terça-feira, 26 de agosto de 2008

O Mito do Pico Maior de Friburgo



No distante ano de 1984 eu, aos 14 anos de idade e por intermédio de um vizinho bem amalucado, entrava para o CEP. Hoje penso que poucos fatos da minha vida tiveram conseqüências tão marcantes e duradouras. O vizinho em questão era o Fernando Funchal, um dos mais ativos guias da época. O presidente do CEP era o Tonico, grande escalador que, com suas conquistas, levava o nome do CEP para além das fronteiras petropolitanas.

Na época, a grande aventura dos montanhistas petropolitanos era acampar no Morro Açu, nos abrigos, pois barraca era um luxo muito distante da realidade da maioria de nós. Lanternas de carbureto, mochilas e sacos de dormir feitos pelo William “Zaraba”, e mais uma relação de equipamentos que a garotada de hoje nem imagina. Acampar no Açu era um barato. E uma grande ralação.

E foi lá, curtindo dias lindos e frios em frente ao Abrigo 1, que eu vi pela primeira vez aquela distante formação de montanhas que ficava onde o sol nascia. Os Três Picos. Nesta mesma época o André Ilha e a Lúcia Duarte lançavam o Catálogo de Escaladas do Rio de Janeiro. Folheando o Catálogo comecei a conhecer mais detalhes de um lugar quase mitológico chamado Salinas.

Poucos anos mais tarde, já com carteira de motorista e uma Brasília que tinha uma cor meio vinho meio roxa, tentei chegar mais perto daquelas lindas montanhas que eu via do Açu. Nas freqüentes idas a Nova Friburgo fui fazendo incursões no Vale dos Frades e em Salinas, mas as péssimas estradas da época nunca me permitiram chegar tão perto.

E os relatos das subidas ou tentativas de ascensão ao Pico Maior povoavam o imaginário dos montanhistas. Chaminés sem proteção, horizontais horripilantes, escaladores exaustos obrigados a passar a noite na pedra e outras roubadas faziam parte dos relatos de quem voltava de lá.

E vieram os anos 90. Gerações de ótimos escaladores surgiram em paralelo a uma incrível evolução dos equipamentos. Os mitos foram sendo derrubados um a um, sem piedade. Escaladores cada vez mais habilidosos e com equipamentos cada vez mais leves marcaram o fim do período romântico do montanhismo. Os “bichos-papões” da época, como Agulha do Diabo, Verruga e Garrafão viraram excursão de um dia na programação dos clubes. Em Salinas o Pico Maior passa a ter uma série de outras vias, tornando a mitológica Face Leste apenas mais uma via, ainda a mais freqüentada, mas a mais fácil. O título de maior via de escalada do Brasil, que foi da Leste com seus 750m por muitos anos, vai para novas conquistas. Algumas com mais de 1000 metros de extensão.

Mas mesmo com toda a evolução e as facilidades para se chegar a Salinas, um grande número de incidentes e até acidentes continuou marcando as ascensões ao Pico Maior, mostrando que a montanha ainda tem um preço a cobrar dos escaladores despreparados.

Já no final dos anos 90 resolvi escalar com mais freqüência com a intenção de um dia escalar a Leste e pisar no cume da mais alta montanha da Região Serrana Fluminense. Curiosamente, em vários momentos e por diversos motivos acabei não indo. Subir o Pico Maior começou a virar um grande objetivo, algo perto de uma obsessão. Em 2005 tive meu primeiro contato com a rocha, numa investida onde tivemos que abortar a subida após 9 enfiadas, por conta de um joelho inflamado do meu parceiro Alexandre Motta. Era um dia lindo e a escalada fluía num ótimo ritmo. Mas tivemos que voltar. Deste fracasso uma lição para a próxima tentativa: Escalar mais leve !

Ainda em 2005 uma nova tentativa, abortada de madrugada por conta de uma chuvinha fina que molhou tudo. Nesse dia acabamos novamente, eu e o Motta, entrando mais tarde na também tradicional via CERJ no Capacete. Revezamos as guiadas desta linda via de 450m, que acabou sendo minha primeira via completa em Salinas. Logo depois entrou a estação das chuvas, adiando meu projeto de subir o Pico Maior para a temporada 2006.

Em abril de 2006 voltamos para Salinas. No nosso primeiro dia lá o mau tempo só permitiu caminhadas. À noite eu o Motta decidimos que partiríamos para o Pico no dia seguinte. Arrumamos tudo em mochilas leves com a intenção de fazer uma ascensão rápida e dormimos cedo, confiando da previsão de melhora do tempo. Tinha combinado com o Motta que tentaria guiar as 17 enfiadas da Via Leste. A escalada do Pico Maior era uma questão pessoal.

Madrugamos a ponto de estar na base com os primeiros raios de sol. Entramos na via às 6:30 com a montanha envolta em névoa. O tempo não havia melhorado. Logo após a primeira enfiada começaram os problemas, pois fomos descobrindo que vários trechos estavam molhados. Decidimos não escalar a francesa e fomos vencendo com cuidado lance a lance. Quando vimos as condições da quarta enfiada a coisa ficou feia e o Motta mencionou voltar. Arrisquei guiar um lance horizontal molhado, com duas passadas em aderência. Realmente não queria desistir. O Motta também conseguiu passar no lance e ai o astral melhorou por conta de algumas enfiadas secas.

Mas na oitava enfiada, pouco antes do trecho de mato que antecede a primeira chaminé, encontramos uma situação aparentemente intransponível, com um extenso lance, totalmente molhado. Discutimos novamente a possibilidade de voltar, mas resolvi tentar entrar no lance. Pedi muita atenção ao Motta e fui subindo um veio de cristais molhados. Quando vi que seria impossível continuar resolvi arriscar de vez e subir a esquerda da via, longe dos grampos. Se o grampo da parada seguinte estivesse num trecho molhado eu teria que desescalar um longo trecho, mas depois de esticar uns 30 metros da última proteção acabei chegando na parada, sequinha.... Que alívio! Pela primeira vez neste dia tive certeza de que nada iria nos impedir de chegar ao cume. Rapidamente fomos até a base da primeira chaminé, onde descansamos e fizemos um lanche. A partir deste momento comecei a escalar conversando no rádio com minha namorada Gisele, que nos via com luneta de uma pedra no caminho para o Vale dos Deuses.

Tirei a mochila e entrei na primeira chaminé de tantas histórias. Com vários platôs intermediários a chaminé acabou sendo tranqüila. O lance seguinte, a famosa descidinha em diagonal acabou se mostrando fácil, com agarrões. Parei em P10 e fiquei conversando com a Gisele enquanto dava segurança ao Motta. Na horizontal a Gisele se espantou ao ver o Motta com os braços abertos se equilibrando no lance, que é bem exposto para o participante.

A enfiada seguinte me pareceu ser a enfiada-chave da Leste. Depois de 10 enfiadas, já um pouco cansado, me concentrei e entrei guiando uma seqüência que varia entre 4º e 5º com subidas, horizontais, lacas, rampas, cristais. Tomei um “perdido” após uma laca e acabei pulando um grampo. Mais acima outro “perdido” que me obrigou a desescalar um lance. Finalmente cheguei em P11, e ao me virar para avisar ao Motta que estava ancorado me surpreendi com a verticalidade da enfiada. A Gisele passou um rádio dizendo que voltaria ao abrigo, pois estava congelando.

De P11 em diante a inclinação cede um pouquinho e a via passa por lances lindos com agarrões e fendas até a entrada da segunda chaminé. Comemos mais alguma coisa e eu me preparei para entrar guiando, já bastante cansado. A segunda chaminé é bem pior que a primeira, pois é mais extensa e não tem nenhum ressalto para descanso. Ao final um grampo e um lance de domínio, onde eu tomei mais um “perdido” saindo da rota e escalando um veio de cristais no fundo da chaminé. Consegui voltar para a rota numa passada bem aérea e adrenante e finalmente cheguei em P14.

Entrei guiando a enfiada seguinte, que começa num lance esquisito, meio chaminé, meio aderência, meio fenda, e segue pelo primeiro artificial com uma salada de grampinhos e chapeletas bem esquisitos. Finalmente cheguei a tão esperada P15, um amplo platô já bem pertinho do cume. Colocamos os anoraques e eu parti guiando uma enfiada curtinha com um artificial no meio. Cheguei a entrar no artificial guiando em livre, mas no final me rendi ao cansaço e fiz em artificial mesmo. Logo cheguei em P16 e fui seguido pelo Motta, que estava exausto. Daí para cima fomos meio que à francesa e nem paramos em P17. Ás 14:00 chegamos na vertente norte do cume, onde tiramos as mochilas e nos cumprimentamos.

Enquanto o Motta enrolava a corda eu fui rapidamente até o conjunto de blocos que marca o ponto mais alto e fiquei ali sozinho. O cume estava envolto em névoa, sem vento. Um silêncio absoluto. Tudo o que eu já passei nos meus 22 anos de montanha passou como um filme acelerado. Eu estava finalmente lá, no cume daquela montanha mágica que esteve tão presente nesses anos todos. Não importava se a montanha já não era esse mito todo. Nem que a escalada nem tinha sido tão difícil assim. Senti que tinha encerrado um ciclo e curiosamente senti um estranho vazio. Era gostoso escalar e treinar pensando em um dia subir o Pico Maior. Mas e agora... ...agora o Motta chega e me alerta da necessidade de descer. Tiramos algumas fotos e assinamos o livro de cume. Fizemos um lanche reforçado e iniciamos a descida pela via Sílvio Mendes. Já eram 15:00 horas, um pouco tarde.

Em contraponto à magia silenciosa do cume, a descida pela Sílvio Mendes foi uma bela ralação. Trecho molhados, cordas embolando e agarrando. Cerca de 8 rapeis mais tarde, a noite chegou. Mais dois rapeis iluminados pelas nossas head lamps e estávamos finalmente arrumando nosso material de escalada na mochila, no colo entre o Pico Maior e o Capacete. Caminhamos de lá até o carro, aonde chegamos 14 horas depois da partida.

Nos outros 3 dias que ficamos em Salinas nem escalei mais. Passei curtindo o lugar e principalmente tentando entender tudo que passou pela minha cabeça no cume do Pico Maior. Não cheguei a grandes conclusões, mas passei a olhar para o Pico Maior com um velho amigo. Existe um provérbio que diz: “Não se vencem as montanhas como se vence um inimigo. Se conquistam as montanhas como se conquista um amigo”.

4 comentários:

  1. Oi Waldir!
    Que relato belíssimo...
    Voltei a Salinas através dele!
    Beijo grande.
    Ester

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  2. Waldyr, excelente relato. O CEP e as aventuras que muitos jovens como nós passamos lá foram marcantes em nossas vidas. Infelizmente a minha passagem por lá foi curta mas igualmente marcante. Guardo boas lembranças de tantas caminhadas realizadas. Saudades daquele tempo! Abraço, Manuel Gaivão

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    1. Pois é Manuel, é bom olhar pra trás e ver que vivemos muitas coisas legais na montanha.

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